5. – A Criação em Cristo e a
queda original
Quando as
teorias evolucionistas surgiram no cenário cientifico, a atitude de muitos
cristãos bem intencionados, mas sem o necessário espírito crítico e sem um
mínimo de conhecimento científico, foi rejeitá-las “in totum” como algo de
satânico e essencialmente materialista, porque em desacordo com o relato da
criação do livro do Gênesis.
Mas, com o
desenvolvimento da crítica literária da Bíblia, hoje é comumente aceito que o
autor sagrado não tivera qualquer intenção em relatar a criação do Universo e
do primeiro homem, exata e detalhadamente, da maneira pela qual ela teria sido
realizada; mas, simplesmente, utilizando de um estilo literário comumente
empregado em sua época e capaz de ser entendido pelas pessoas a quem se dirigia
ensinar que todo o Universo fora criado do nada, por um ato livre de Deus, e
ensinar que ao primeiro homem estava reservado um lugar preeminente no conjunto
da criação, por ter sido criado a imagem e semelhança de Deus. Assim, hoje é
aceita a hipótese evolucionista, desde que se considere ser Deus o criador
absoluto de todo o Universo. Esta hipótese, não é contraditória ao relato do
Gênesis, sendo mesmo bastante provável.
Outra hipótese
científica que aparentemente está em desacordo com o relato do Gênesis é aquela
da poligenia, pela qual no início teria havido não apenas um casal, mas muitos
casais dos quais provieram o gênero humano. Com relação à hipótese poligênica,
as dificuldades são bem maiores e ainda persistem, a ponto de a hipótese
monogênica, ser tida não apenas como a mais provável, mas praticamente como a
única aceitável e em acordo com a narração bíblica.
Embora não negando
a grande possibilidade da criação monogênica, nem a afirmando como mais
provável do que a hipótese poligênica, porque sendo este problema de natureza
científica, deve ser resolvido pelos capacitados para esta tarefa, queremos
tecer algumas considerações, pelas quais gostaríamos de mostrar que a hipótese
do poligenismo não se encontra em desacordo com a narrativa bíblica da criação.
A principal
objeção quanto ao poligenismo vem do fato de que em Gênesis, Adão e Eva, são
mencionados claramente como os ancestrais de toda a humanidade e, mesmo no Novo
Testamento encontramos referências a Adão como uma pessoa individual, do qual
todos nos descendemos. Outra objeção refere-se ao relato do pecado original,
cometido pelo primeiro homem e cuja mancha foi transmitida a todos os seus
descendentes.
Com referencia
a primeira objeção, fácil nos é responder, uma vez que na Bíblia muitas vezes
são narrados acontecimentos sobre pessoas, referindo-se não a um único
indivíduo, mas a toda a nação israelita; outras vezes, episódios e mesmo
personagens são criados com a finalidade de transmitir verdades de fundo
religioso, sendo suas relações com acontecimentos e pessoas reais, apenas
remotos. Por exemplo: a descrição da criação em sete dias, a narrativa do
dilúvio, os patriarcas anteriores ao dilúvio, etc.
As diversas
cronologias que serviam de elo entre o povo israelita e seus ancestrais (Adão,
Noé, Abraão e outros), foram escritas com a precisa finalidade de demonstrar
essa relação e não correspondem, necessariamente com a real sucessão histórica
dos patriarcas. É sabido que a existência do homem na terra se estende por
períodos muitas vezes maiores do que o computado na Bíblia.
Qual seria
então o objetivo do autor sagrado ao descrever todos os homens como
descendentes de Adão e Eva, senão aquele de mostrar que no início foi criado
quer imediatamente, quer através da evolução, apenas um casal do qual todos os
homens receberiam a sua natureza?
Conquanto a
resposta afirmativa continue sendo válida, cremos que podemos considerar uma
segunda resposta a essa pergunta, se considerarmos a criação sob o aspecto da
misticidade e da historicidade do Corpo Místico e principalmente sob a luz da
posição central ocupada por Cristo no desenrolar da História da Salvação.
Ao estudarmos
a historicidade e a misticidade do Corpo Místico, constatamos por um lado, que
os homens encontram-se de tal maneira unidos entre si que constituem um único
corpo místico, do qual Cristo, o primogênito de todas as criaturas, é a cabeça
e os demais homens, membros. Assim sendo, sem que cada homem perca a sua
personalidade individual, eles participam também de uma personalidade
corporativa, a personalidade do Corpo Místico. As relações existentes entre os
homens, nesse Corpo Místico são muito mais íntimas e profundas que aquelas
existentes através de simples laços sociais, históricos ou mesmo hereditários.
Por outro
lado, verificamos que o Corpo Místico embora estabelecido por Cristo e em
Cristo, no momento de sua Encarnação e restabelecido no instante do seu
Sacrifício Redentor, inclui todos os homens, desde o primeiro a ter sido
criado. A razão na qual nos baseamos para esta afirmação é o fato de que os
atos de Cristo, sendo Cristo homem e Deus, devem ser considerados como atos
eterno-temporais, portanto tendo conseqüências em todo o histórico. Talvez,
possamos mesmo dizer que quando São Paulo nos fala da criação de todas as
coisas em Cristo, esteja também se referindo ao fato desta preeminência da
Encarnação na Economia da Salvação e, consequentemente, de sua posição como
coroamento de toda a Criação.
Os
acontecimentos pertencentes a História da Salvação devem ser considerados sob o
duplo aspecto eterno-temporal, sendo o aspecto temporal apenas o aspecto
exterior, pelo qual presenciamos o desenrolar desses mesmos acontecimentos,
sendo o aspecto eterno, aquele pelo qual estes acontecimentos se realizam na
esfera mística, em que os homens encontram-se em contato pessoal com Deus,
através de Cristo, em Cristo e por Cristo.
A Bíblia sendo
o instrumento pelo qual Deus revela-se a si próprio aos homens, deve
primariamente transmitir as verdades reveladas em sua integridade essencial, o
que equivale a dizer em seu aspecto eterno e místico. Mas, existindo o homem no
temporal e, estando o mesmo condicionado em seu compreender as condições de
espaço e tempo, mundanidade, sociabilidade, historicidade, etc., e, além disso,
utilizando-se o autor sagrado de meios de comunicação igualmente adaptados ao
temporal, a mensagem a ser revelada deve sê-la de tal maneira a ser entendida
pelos homens, de acordo com as condições de sua época, sociedade e cultura;
muito embora, em conseqüência, a mensagem venha a ser captada de modo parcial e
imperfeito; isto se deve a contingência e as limitações da natureza humana.
Com relação a
interpretação da narrativa do Gênesis, segundo a qual o autor sagrado parece querer nos
mostrar que todos os homens são descendentes de Adão e Eva, esta interpretação
parece-nos exterior e considerar a narrativa bíblica apenas sob o ponto de
vista histórico-temporal, considerando-a porém sob o duplo aspecto
eterno-temporal, parece-nos que o objetivo do autor bíblico é mostrar-nos precisamente
a existência da relação mística que une os homens entre si. Mas, como em sua
época e, mesmo hoje, ele não teria sido compreendido pela maioria, se falasse a
respeito de relações místicas, não haveria nada mais apropriado para demonstrar
a existência desta união mística, que descrever todos os homens como
descendentes de um mesmo indivíduo.
Esta segunda
interpretação apresenta a vantagem de não excluir a possibilidade, nem de
hipóteses monogenísticas, nem de hipóteses poligenísticas, E, mesmo no caso de
ser constatada a existência de seres humanos em outros planetas, esta
interpretação permitir-nos-ia a considerá-los integrados na mesma Economia da
Salvação que os homens terrestres e membros do mesmo Corpo Místico de Cristo. A
consideração de possíveis seres humanos existentes em outros planetas, como
pertencentes a uma economia salvífica diferente da nossa e a sua exclusão do
Corpo Místico, parece-nos em contradição com a universalidade do Sacrifício da
Cruz e, limitação ilegítima, quer da elevação da natureza humana por ocasião da
Encarnação, quer da sua Redenção por ocasião do Calvário. Enfim, estaria em
flagrante contradição com a primazia de Cristo, como primogênito de toda a
Criação.
A segunda
objeção contra a hipótese poligênica, talvez a mais séria das duas, é aquela
com referência ao pecado original, pelo qual o homem perdeu o estado
sobrenatural, que foi reconquistado apenas com o sacrifício de Cristo.
Mais uma vez
se considerarmos a mística união que incorpora todos os homens a Cristo,
fazendo-os participantes da Graça de Cristo e, portanto elevando-os a um estado
sobrenatural, podemos verificar que embora a participação dos homens como
membros de Cristo, depende total e exclusivamente de Cristo, fonte de toda a
graça; o homem é capaz pelo pecado, de colocar obstáculo a livre circulação da
graça através do Corpo Místico. Assim, é suficiente um só pecado, não
importando se o mesmo tenha sido cometido pelo primeiro homem ou, por alguém
existente em épocas posteriores, para ter como conseqüência a perda do estado
sobrenatural à toda a humanidade. Assim concluímos que toda a humanidade perde
aquele estado sobrenatural, conquistado em virtude da Encarnação do Verbo,
através de um único pecado, cometido livre e conscientemente, independente da
época em que foi cometido. Este estado sobrenatural foi reconquistado para os
homens, definitivamente, por Cristo na Cruz.
Em relação
ao que foi dito acima, não afirmamos que o pecado original seja o resultado de
todos os pecados cometidos pelo homem; não negamos a possibilidade do pecado
original ter tido lugar no início da história da humanidade, por aquele que
teria sido o ancestral de todos os homens. Apenas o que afirmamos aqui, é que
em virtude da união mística, um único pecado, mesmo se cometido na consumação
dos séculos, teria sido suficiente para ocasionar a queda de todos os homens.
Sendo
qualquer membro do corpo místico capacitado a cometer o pecado original e
ocasionar a queda da humanidade, a hipótese poligenística não deve mais ser
considerada contraria a doutrina do pecado original, pois não é necessário que
o mesmo tenha sido cometido pelo ancestral de todos os homens. Segundo esta
interpretação, os efeitos do pecado original nos indivíduos seriam devidos não
a laços puramente hereditários, mas a um rompimento da união mística que une os
homens entre si, em Cristo e com Cristo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário